
Rachel de Queiroz, escritora cearense (1910 – 2003)
Infância e formação (1910 – 1927)
Rachel de Queiroz nasceu em 17 de novembro de 1910, em Fortaleza, Ceará, no seio de uma tradicional família nordestina. O Brasil vivia, então, o período da República Velha (1889–1930), marcado pela hegemonia das oligarquias rurais e por uma sociedade fortemente agrária, desigual e hierarquizada.
Aos cinco anos de idade, Rachel mudou-se com a família para a fazenda “Não Me Deixes”, em Quixadá, no sertão cearense. Em 1915, uma das piores secas do Nordeste obrigou a família a migrar para o Rio de Janeiro e, depois, para Belém. Essa experiência — de deslocamento forçado, pobreza e desigualdade — foi profundamente marcante e se tornaria uma das matrizes temáticas de sua obra literária.
Rachel estudou em colégios religiosos e, ainda jovem, demonstrou grande talento para a escrita. Aos 16 anos, em 1927, estreou na imprensa com críticas literárias no jornal O Ceará, assinando como “R.Q.”. Nessa época, o Brasil vivia a efervescência cultural da década de 1920, marcada pela Semana de Arte Moderna (1922) e pela difusão de ideais modernistas, que defendiam uma literatura mais próxima da realidade nacional e popular.
Estreia literária e o ciclo das secas (1930 – 1940)
Em 1930, com apenas 20 anos, Rachel publicou O Quinze, romance que se tornaria um clássico instantâneo da literatura brasileira. A obra retrata a grande seca de 1915 — que ela própria presenciara na infância — e mostra, com grande realismo e sensibilidade, a luta de famílias sertanejas contra a miséria e a fome. A protagonista, Conceição, representa uma mulher moderna, intelectual e independente, contrapondo-se ao universo tradicional do sertão.
A publicação de O Quinze coincidiu com a Revolução de 1930, que pôs fim à República Velha e levou Getúlio Vargas ao poder, inaugurando um período de transição política. Nesse contexto de mudanças, Rachel foi rapidamente reconhecida como a primeira grande voz feminina da literatura modernista brasileira. Seu estilo conciso e direto, aliado a um forte senso de realidade social, dialogava com as transformações políticas e culturais do país.
Nos anos seguintes, Rachel envolveu-se intensamente com a política e com o jornalismo. De tendência de esquerda, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas rompeu com ele ainda na década de 1930. Trabalhou como cronista em jornais e revistas, destacando-se como uma das primeiras mulheres a conquistar espaço de destaque na imprensa nacional.
Em 1937, lançou João Miguel, romance ambientado no sertão cearense e centrado na trajetória de um presidiário. O livro foi publicado no mesmo ano em que Vargas instaurou o Estado Novo (1937–1945) — um regime autoritário que censurou opositores políticos e controlou a imprensa. Rachel, que havia sido perseguida por suas ideias, adotou uma postura mais independente nesse período.
Consolidação literária e jornalismo (1940 – 1960)
Nos anos 1940, Rachel publicou As Três Marias (1939), romance que aborda a vida de três jovens mulheres — Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória — e suas diferentes trajetórias em meio às transformações sociais e aos papéis de gênero da época. A narrativa crítica e sensível sobre a condição feminina antecipou debates que se tornariam centrais décadas depois.
Ao longo das décadas de 1940 e 1950, consolidou-se também como cronista, gênero no qual teve enorme influência. Escreveu por décadas para veículos de grande circulação, como O Cruzeiro e O Estado de S. Paulo. Suas crônicas tratavam tanto de temas do cotidiano quanto de questões políticas e culturais mais amplas, sempre com clareza, ironia sutil e precisão estilística.
Em 1950, publicou Caminho de Pedras, romance de forte cunho político e psicológico, no qual personagens enfrentam dilemas ideológicos em tempos de repressão. A obra foi recebida como um marco de maturidade literária.
O período também coincidiu com grandes mudanças no Brasil: urbanização acelerada, industrialização e aumento das desigualdades sociais. Rachel observava esses processos de forma crítica, muitas vezes a partir de uma perspectiva nordestina, sem deixar de dialogar com questões nacionais.
Reconhecimento institucional e engajamento político (1960 – 1980)
Em 1964, com o golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil (1964–1985), Rachel assumiu posições mais conservadoras do que no início da carreira, apoiando inicialmente a deposição de João Goulart. Contudo, ao longo do regime, manteve-se crítica em alguns pontos e continuou atuando como uma voz independente.
Em 1961, havia sido a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira nº 5 — um marco histórico para a presença feminina nas instituições culturais do país. Também atuou em organismos internacionais, como a Comissão de Direitos Humanos da ONU, e foi membro do Conselho Federal de Cultura.
Nos anos 1970, publicou Dôra, Doralina (1975), um romance ambientado no Ceará e no Rio de Janeiro, no qual acompanha a vida de uma mulher sertaneja que busca autonomia e liberdade — reafirmando seu interesse constante por personagens femininas fortes e complexas.
Últimos anos, prêmios e legado (1980 – 2003)
Rachel de Queiroz recebeu os principais prêmios literários do Brasil e foi amplamente traduzida no exterior. Em 1993, recebeu o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra. Em 2000, foi agraciada com a Ordem do Mérito Cultural.
Continuou escrevendo até o final da vida, mantendo sua coluna jornalística e participando ativamente de debates públicos. Faleceu em 4 de novembro de 2003, aos 92 anos, em sua fazenda no Ceará.
Temas e estilo literário
A obra de Rachel de Queiroz apresenta características marcantes:
- Realismo social e regionalismo nordestino: retrata a vida no sertão, os efeitos das secas, a migração e as desigualdades sociais;
- Personagens femininas fortes: protagonistas que desafiam papéis tradicionais de gênero, antecipando debates feministas;
- Estilo conciso e direto: narrativas econômicas, sem excesso de adjetivos, com forte densidade dramática;
- Equilíbrio entre regional e universal: embora enraizada no Nordeste, sua obra trata de temas humanos amplos — liberdade, amor, opressão, esperança;
- Diálogo com a história política do Brasil: suas posições e personagens refletem diferentes momentos — da República Velha ao regime militar.
Importância histórica e literária
Rachel de Queiroz foi:
- A primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras;
- Uma das principais representantes da Geração de 30, ao lado de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado;
- Pioneira na representação feminina na literatura brasileira, tanto pelo conteúdo de sua obra quanto por sua trajetória como intelectual pública;
- Uma das maiores cronistas do país, com mais de 60 anos de atividade jornalística;
- Autora de uma obra que aliou profundidade estética e engajamento social, contribuindo para a formação de uma literatura nacional moderna e crítica.
Principais obras
- O Quinze (1930)
- João Miguel (1937)
- Caminho de Pedras (1937)
- As Três Marias (1939)
- Dôra, Doralina (1975)
- Memorial de Maria Moura (1992) — romance histórico que foi adaptado para a televisão em 1994.
Rachel de Queiroz foi uma figura-chave na literatura e na vida intelectual brasileira do século XX. Sua obra atravessou diferentes momentos históricos — da República Velha à redemocratização —, acompanhando e interpretando as transformações do país. Ao representar o sertão nordestino com humanidade e profundidade, Rachel ajudou a consolidar o romance social brasileiro, ao mesmo tempo em que abriu caminhos para outras escritoras e intelectuais mulheres.
