A oportunidade que se perdeu
Um ano após os atentados em Nova York e Washington, o mundo se depara com um panorama sombrio (Roberto Pompeu de Toledo) Revista Veja, 18 de setembro de 2002

Torres do World Trade Center após ataques terroristas • Getty Images
As mortes, a dor, o medo e o luto não esgotam o assunto. Não bastasse isso, não bastasse a barbárie levada a limites impensáveis, o 11 de setembro deixou outro legado desastroso: o da oportunidade perdida. No dia 12 de setembro de 2001, junto com o pânico, com o choro, com os trabalhos de resgate entre os escombros das torres gêmeas e a busca dos culpados, misturada a esses elementos como pedra preciosa misturada ao monturo, raiava uma esperança. Aquele terrível evento podia ser o ponto de partida para um mundo mais amigo. Os Estados Unidos descobriam-se vulneráveis. Ao mesmo tempo, davam-se conta dos extremos a que podem conduzir situações relegadas à crônica irresolução como o conflito israelense-palestino e o desassossego do mundo islâmico, sem falar nas desigualdades entre os povos, a miséria e a fome da maior parte do planeta. Era hora de agir em favor de um mundo menos conflitado e menos injusto. De congregar as nações em busca de soluções que tornassem o planeta Terra um lugar menos perigoso de se viver.
Engano. Outra lamentável coincidência foi o 11 de setembro ter encontrado os Estados Unidos sob a presidência de George W. Bush. E então o que se viu foi o inverso. Em vez da abertura para um mundo de mais equidade e mais bem distribuído acesso às riquezas, o enclausuramento nos próprios interesses. Em vez do trabalho conjunto, em parceria com outros países, a política da autossuficiência e do egoísmo. O capital de simpatia acumulado pelos Estados Unidos na sequência dos atentados foi dissipado ao longo de um ano de arrogância, empáfia belicista e descumprimento de acordos internacionais. O primeiro aniversário dos atentados encontra os Estados Unidos não na liderança de um mundo tornado mais seguro pela busca de soluções para suas carências ou pelo desarme dos potenciais conflitos, mas, isto sim, empenhados na criação de condições, e clima, para uma nova guerra, contra o Iraque desta vez – de amplitude e consequências com certeza muito mais tenebrosas do que a guerra do Afeganistão.
Se algo ficou claro, ao longo deste ano, foi o desprezo do governo Bush pela colaboração internacional. À recusa de ratificar o Protocolo de Kioto sobre o aquecimento global e o pacto do Rio sobre biodiversidade, somaram-se a decisão de retirar-se do Tratado de Mísseis Antibalísticos, a oposição à proibição das minas terrestres e o boicote ao Tribunal Penal Internacional. “A desconfiança americana com relação ao envolvimento no exterior é antiga”, argumentou a escritora Susan Sontag, num artigo publicado na semana passada no The New York Times. “Mas este governo adotou a radical posição de que todos os tratados internacionais são inimigos potenciais dos interesses dos Estados Unidos”. O entendimento de Washington, prossegue Sontag, é de que os tratados “forçam os Estados Unidos a obedecer a convenções que podem um dia ser invocadas para limitar a liberdade de fazer o que o governo pensa ser do interesse do país”.
O cientista político Francis Fukuyama, autor do famoso O Fim da História, vê nas posturas diversas com relação aos acordos internacionais e às organizações multilaterais uma diferença profunda entre a visão americana e a visão europeia do mundo. Os europeus, segundo Fukuyama, em outro artigo recente, estão “horrorizados” com uma política na qual os Estados Unidos decidem sozinhos quando e onde devem usar a força. “A visão europeia é diferente”, acrescenta. “A Europa procura criar uma genuína ordem internacional, apropriada ao mundo pós-Guerra Fria e baseada no direito. Esse mundo, liberto de ásperos conflitos ideológicos e da competição militar em larga escala, dá espaço substancialmente maior ao consenso, ao diálogo e à negociação como caminhos para a solução das disputas”.
Os Estados Unidos têm dado ao mundo lições de justiça e aceitação de diferenças. Os avanços contra um passado de opressão e segregação dos negros são um exemplo disso. Outro é o culto do “multiculturalismo”, pelo qual o país se verga à coexistência respeitosa entre múltiplas crenças, costumes e padrões de comportamento. Por isso mesmo, é mais chocante presenciar o unilateralismo e o belicismo característicos de seu atual governo. Bush e sua trupe na semana passada procuravam respaldo da ONU para o ataque ao Iraque. A relação com a ONU é outro exemplo da postura avessa aos foros multilaterais apontada por autores díspares como Susan Sontag, à esquerda, e Fukuyama, à direita. O governo Bush não recorre à organização senão quando necessita de um mínimo de juridicidade a seus desígnios belicistas. Fica a ideia de que o que Washington queria, mesmo, é uma ONU tão dócil aos interesses de sua política externa quando o FMI costuma ser aos de sua política econômica.
Um ano depois dos atentados, o mundo descortina um panorama sombrio. E pensar que tudo poderia ter sido tão diferente…