(Roberto Pompeu de Toledo, Revista Veja, 29 de agosto de 2001) A interdição aos negros de certos ofícios simples representa a discriminação no estágio mais puro

Onde estão os negros?
Consta que, ao iniciar uma das palestras, durante sua mítica visita ao Brasil, Jean-Paul Sartre encarou a plateia, vasculhou o recinto com os olhos incertos que abrigava sob as grossas lentes e disparou a pergunta acima. O Brasil não era um país de ampla população negra? Não se tratava, além disso, de uma das raras democracias raciais do planeta? Sendo assim, onde estavam os negros? Sartre vasculhava o recinto e não via nenhum. Por que haviam faltado naquele dia?
Antes de prosseguir, façamos uma pausa para explicar por que a visita de Sartre ao Brasil, ocorrida em 1960, merece ser qualificada como “mítica”. Foi algo que sacudiu o país. O fato de o maior filósofo, o papa do existencialismo, honrar-nos com sua presença deixou-nos tontos. E tanto que até hoje ter comparecido a algum dos eventos de que tomou parte constitui ponto alto do currículo de quem teve tal sorte. Ainda agora, quando se fez a retrospectiva da vida de Jorge Amado, lá estava, nos jornais e revistas, sua foto com Sartre. Quando surge ocasião para publicar fotos do passado do presidente Fernando Henrique Cardoso, também é obrigatória aquela em que aparecem ele e a mulher, Ruth, sentados à primeira fila, durante conferência do mestre. A imagem de Sartre não ostenta hoje o antigo brilho. Os jovens talvez nem saibam quem foi essa figura pré-histórica, de um tempo em que – pasme-se – não havia internet nem telefone celular. Mas a visita de Sartre ao Brasil jamais perderá o brilho. Talvez só a visita de Brigitte Bardot, quatro anos depois, respeitados os diferentes tipos físicos e as respectivas áreas de atuação desses dois notáveis cidadãos franceses, possa servir-lhe de paralelo. Sartre, ele próprio, pode cair no mais lastimável esquecimento. Sua visita ao Brasil, nunca.
Tal visita é mítica porque constituiu um marco, como os mitos, e também porque, como os mitos, deixou atrás de si uma zona de penumbra. Teria ele feito mesmo aquela pergunta à plateia, ou ela foi inventada por outrem e atribuída a ele como a indagação perfeita que a um filósofo perfeito cabia fazer naquela hora e local? Não importa. O que se quer dizer aqui, dada a máxima vênia, é que o grande Sartre, supondo-se que foi dele mesmo a pergunta, fez a pergunta errada. Ou melhor: fez a pergunta certa, mas no local errado. Deveria tê-la feito mais adiante, quando fosse jantar, no restaurante.
Explique-se. Não surpreende que os negros não estivessem na conferência. Eles não tinham, e continuam não tendo, acesso à boa educação. Então como agora, só uns raros chegavam à universidade. Ir à conferência de Sartre significaria superar uma série de obstáculos, começando pelo lar pobre e continuando com a escola precária, a falta de acesso aos livros e aos bens culturais em geral, a necessidade de cedo trabalhar para reforçar o orçamento familiar, o cansaço produzido por pesadas tarefas, o tempo perdido em intermináveis deslocamentos de ida e volta a distantes periferias. Já no restaurante, ele levantaria os olhos e perceberia, com muito mais surpresa, que igualmente não havia negros – e não entre os clientes, nisso não haveria nada de surpreendente, mas entre as próprias pessoas de serviço, ou seja, entre os garçons. Ora, o ofício de garçom é relativamente simples. Exige pés resistentes, para andar de cá para lá a noite toda, e habilidade para segurar uma bandeja. Não precisa chegar à universidade. Tudo o que se precisa ler é o cardápio, não O ser e o nada. Em suma, não é preciso vencer uma miríade de obstáculos educacionais e culturais. E, no entanto, salvo exceções, não há negros entre os garçons no Brasil. Eis a discriminação no seu ponto mais cruel. Não no ponto de chegada, como é o caso da universidade, que supõe a superação de incontáveis obstáculos, mas no ponto de saída, fincada à porta de um ofício que, sendo simples, em tese estaria desde sempre ao alcance dos mais desprovidos.
Não só os restaurantes discriminam. Muitas lojas também não admitem vendedores(as) negros(as). E não é preciso ser filósofo para saber a causa do fenômeno: é a maldição da “boa aparência”, tenebrosa fórmula que exclui os negros das profissões que implicam contato direto com o consumidor de classe alta. Em Nova York, é raro que um restaurante ou uma loja da Quinta Avenida não empregue negros. Em São Paulo, não há negros nem nos restaurantes nem nos shopping centers. Eis toda a diferença entre um país assumidamente racista, mas que luta para integrar sua sociedade, e uma suposta democracia racial, que deixa estar para ver como é que fica.
Essas considerações vêm a propósito da Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, que se abre nesta semana na África do Sul. A delegação brasileira apresentará propostas que incluem o estabelecimento de cotas para negros na universidade. O acesso à universidade é crucial, mas talvez seja o caso de olhar com mais atenção para o que acontece no acesso a uma profissão como a de garçom, por exemplo.