
Clarice Lispector, escritora ucraniana (1925 – 1977)
Olhos oblíquos, sugerindo distância. Rosto anguloso, maças salientes: um belo rosto eslavo. É Clarice Lispector, num retrato assinado por De Chirico. Não há fragilidade em seu rosto: há força, profundidade. Uma certa arrogância de quem domina, mas também serenidade e solidez. Um rosto altivo.
– Sou uma mulher simples. Não tenho sofisticação. Parece que me mitificaram. Eu não quero ser particular.
No entanto, poucas pessoas foram tão particulares quanto ela. “Era uma mulher de grande liberdade. Uma mulher que viveu uma grande solidão. A solidão era a sua maneira de ser livre”, diz Olga Borelli, sua grande amiga. “Clarice tinha algumas coisas diferentes, que ela provocava, porque não aguentava a rotina. Acordava às três ou quatro horas da manhã, porque dormia cedo. Ia para a cozinha, tomava café. Ia para a sala, ficava fumando, pensando, com Ulisses, seu cachorrinho. Ouvia também a Rádio Relógio – uma emissora que só dá notícia e o tempo. A maior parte do tempo ela ficava quieta, pensando, fumando. Ela se desvencilhava dos fatos o mais depressa que podia:
– Procuro viver rapidamente os fatos, porque a meditação profunda me espera!”
A menina de Tchetchelnik
Lispector é um nome russo. Clarice nasceu na Ucrânia, numa aldeia que não existe no mapa.
Corria o ano de 1925 e os Lispector estavam emigrando da Rússia para a América. Era uma família de quatro pessoas: Pedro e Marian, os pais; Tânia e Elisa, as irmãs. Mas logo seriam cinco: Marian estava grávida e, no dia 10 de dezembro, nasceu Clarice, na pequena Tchetchelnik.
– Não sei dizer coisa alguma sobre esse lugar. Ali apenas nasci e nunca mais voltei – declarou ela numa entrevista a O Pasquim, de 9 de junho de 1974.
Dois meses depois, já em 1926, chegavam ao Brasil. Moraram em Alagoas, depois se mudaram para Pernambuco. Passou a infância em Recife. Uma infância de menina alegre, mexedora, de muita queda e correria. Fez o primário no Grupo Escolar João Barbalho.
Aos sete anos aprendeu a ler e descobriu que os livros eram escritos por autores, fato espantoso para ela. Queria ser autora também e passou a escrever histórias ingênuas, que enviava para o Diário da Tarde. Havia prêmio para as melhores, mas Clarice nunca ganhou nada.
Já que escrever contos não dava em nada, Clarice resolveu tentar o teatro: aos nove anos escreveu uma peça de três atos. Mas esta ninguém leu: ela a guardou bem guardada numa estante, “era uma história de amor”, confessou mais tarde. E lia, lia o que podia. Monteiro Lobato, por exemplo, As Reinações de Narizinho, “o livro mais gostoso de Lobato”, foi obra que a encantou, não só porque era de leitura muito saborosa, mas também porque foi muito difícil consegui-la – emprestada de uma livraria. Clarice lia uma página por dia, para que não terminasse logo.
Aos nove anos, em 1937, Clarice muda-se com a família para o Rio de Janeiro. Passa a morar no bairro da Tijuca, e a nova escola que frequentava é o Colégio Sílvio Leite. A sua precoce vocação literária sofre uma trégua: nessa época lê muito.
Encanta-se com a romântica Madame Delly; lê Júlio Dinis, José de Alencar, Eça de Queirós. E aventura-se em Dostoiévski, que a emociona, “embora não o apreendesse em toda a sua grandeza”.
Quando termina o ginasial, resolve entrar no curso complementar de Direito, do Colégio Andrews. É o ano de 1940, dedicado intensamente à leitura: frequentava diariamente uma biblioteca de aluguel, na rua Rodrigo Silva, e lê o quanto pode – de Machado de Assis a Graciliano Ramos, passando por Jorge Amado, Mário de Andrade, Rachel de Queiroz. Títulos bonitos a atraíam: assim descobre O Lobo da estepe, de Hermann Hesse. E, quando começou a trabalhar, aos dezesseis anos, passou também a comprar livros, declarou ela a O Pasquim em 1974:
– Com meu primeiro ordenado, eu entrei numa livraria, orgulhosa. Olhei alguns livros. Abri um, vi que era diferente. Eu não sabia quem era Katherine Mansfield. Aí comprei. Custou dez cruzeiros.
Ela também não sabia que, anos mais tarde, seria comparada à genial escritora inglesa, que descobrira por acaso – só porque era diferente…
Tomando notas
Durante o primeiro ano da Faculdade Nacional de Direito, em 1941, Clarice trabalhou como redatora na Agência Nacional. Toma então contato com muita gente: é nesse ponto que o trabalho lhe agrada, “pelo imprevisto, pela aventura”. Depois, passa para o jornal “A Noite” e começa a escrever “com muita angústia” o romance Perto do Coração Selvagem. A angústia era porque “o romance a perseguia” – as ideias vinham a qualquer hora, na rua, no jornal, na faculdade. E assim encontrou um método de escrever: anotar imediatamente as ideias, em qualquer lugar. Método, aliás, que a marcou para sempre, conforme o depoimento de sua amiga Olga Borelli:
– Clarice tomava notas onde quer que estivesse. Na lanchonete, em guardanapos; no cinema, no maço de cigarros. Clarice ia construindo suas obras fragmentariamente.
Em 1943, havia terminado Perto do Coração Selvagem. É o ano do seu casamento com Maury Gurgel Valente, colega de faculdade. Formaram-se ambos em 1944, ano em que ela publicou o livro pela Editora A Noite. Não esperava que fosse um sucesso de público e de crítica. Anos mais tarde, comentaria:
– Ao publicar o livro, eu já programara para mim uma dura vida de escritora, obscura e difícil.
Nápoles, Berna, Torquay…
Por força da profissão do marido – diplomata de carreira – Clarice viveu quinze anos fora do Brasil. Tinha dezenove anos quando chegou a Nápoles, na Itália. Era o ano de 1944: a Europa em guerra. No começo foi ajudante num hospital de soldados brasileiros. Depois, dedicou-se exclusivamente a escrever O Lustre.
O prêmio Graça Aranha, pelo primeiro romance, em 1944, não fez com que Clarice se considerasse uma escritora profissional, ideia que sempre a incomodou. Ela sempre insistia que era “uma escritora amadora”. E escrevia cada vez mais. Após O Lustre (publicado em 1946 pela Editora Agir) começou a escrever A Cidade Sitiada, em Nápoles; em 1946, passa a residir em Berna, na Suíça. Termina o livro, que é publicado em 1949 – ano em que nasce seu primeiro filho, Pedro. A escritora amadora leva muito a sério o papel de mãe. E encontra, então, mais um sistema de trabalho: com a máquina ao colo, forma sempre provisória, mas muito eficiente. Envereda-se então na difícil tarefa de escrever contos, um gênero conciso, no qual ela foi exímia, talvez a melhor. Alguns Contos sai publicado em 1952 – Clarice já havia deixado Berna, passara seis meses em Torquay, na Inglaterra, e agora se dirigia aos Estados Unidos.
Mãe Clarice
O segundo filho, Paulo, nasceu em Washington, cidade onde morou por oito anos. As primeiras notas para o romance A Maçã no Escuro já estavam tomadas quando ela saiu da Europa. O livro só seria terminado em 1956 – e por ele receberia o prêmio Cármen Dolores Barbosa, em São Paulo. A difícil gestação desse volume resultou num de seus melhores trabalhos. Mas, enquanto o gerava, Clarice também cuidava dos filhos, cuidava da casa, dos bichos da casa, que eram vários: coelhos, pintinhos, cachorro… E, entrementes, Clarice escrevia novos contos: Laços de Família saiu em 1960, no mesmo ano em que se separou de Maury Gurgel Valente.
De volta ao Brasil, passou a morar no Rio de Janeiro, num apartamento no Leme. Desta vez, definitivamente. Várias vezes reeditada e agora traduzida para o inglês, o francês, o alemão, o tcheco e o espanhol, Clarice é uma escritora plena. Em 1964, publica dois livros ao mesmo tempo: A Legião Estrangeira e A Paixão Segundo GH.
Um dia, quando ainda morava em Washington, seu filho Paulo perguntou por que não escrevia um livro para crianças. Emocionada, a escritora se lembrou de uns coelhos que tinha quando criança: tema para o Mistério do Coelhinho Pensante, editado em 1967 e prêmio Calunga, da Companhia Nacional da Criança. Entusiasmada (não pelo prémio, mas pela infância), escreveu ainda A Mulher que Matou os Peixes, A Vida Íntima de Laura e Quase de Verdade.
“Três dias no inferno”
Distraída, fumando na cama antes de dormir, deixou o cigarro aceso. Acordou com o quarto em chamas. Queimaduras na mão direita e nas pernas. Clarice passou “três dias no inferno”, naquele ano de 1967.
Recuperada, após cirurgias de enxerto na perna, continuou sua luta: pela literatura, pelo ganha-pão. Este é um ponto importante em sua vida: Clarice fez de tudo um pouco na imprensa. Vivia de seus direitos autorais (nem tanto assim que dessem para viver só deles), de traduções que fazia (a dezenove cruzeiros a lauda, imaginem!), das crônicas que escrevia para o Jornal do Brasil e dos “Diálogos Possíveis”, seção da revista Fatos e Fotos. Muitos implicavam com a “pessoa difícil” que era Clarice.
– Não sou nenhum bicho-papão! – dizia ela, justificando o seu modo solitário de ser.
O preço da fama levou-a a viver muito isolada. Quando seus filhos cresceram, seguiram seus caminhos. A escritora vivia em seu apartamento do Leme com uma governanta (Ciléia Marchi – também sua enfermeira) e uma doméstica, além do cão Ulisses, companheiro inseparável.
Os últimos anos de Clarice foram particularmente dedicados à produção de seus livros mais elaborados, como A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida. Ela, que até 1969 já tinha perto de doze volumes publicados, escreveu mais doze, até o fim da vida. Com Felicidade Clandestina, ganhou o prêmio Golfinho de Ouro. É de 1969 também o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, considerado “estranho” por muitos – começava por uma vírgula e terminava com dois pontos…
Um estranho convite
Em 1976, pelo conjunto de sua obra, Clarice ganhou o prêmio do X Concurso Literário Nacional, de Brasília. Também neste ano recebeu um convite estranho: representar o Brasil no Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia. Clarice foi, por que não? Afinal, fazia jus ao que muitos espalhavam sobre ela: uma mulher solitária, esquisita… Mas foi, sobretudo, porque as coisas misteriosas a atraíam, sempre foi supersticiosa, uma mística.
A participação nesse congresso, contudo, resumiu-se à leitura de seu conto “O Ovo e a Galinha”: conto hermético, “que ninguém entendeu”. Achou engraçado tudo aquilo em Bogotá: mais parecia uma feira com barraquinhas vendendo amuletos, médiuns dando passes…
O ano de 1977 é o de sua morte. A 1º de novembro dirigia-se a um médico para fazer exames. Não se sentia bem. O diagnóstico veio implacável: câncer generalizado. Não havia mais nada a fazer.
Clarice foi internada no dia 16, para um tratamento impossível. Ela pressentia o fim. Tirou do braço o relógio e um amuleto de cobre inseparável. Deu-os a Olga Borelli: “Guarde isso; não vou mais precisar”.
Clarice morreu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário.
Queria ser enterrada no Cemitério São João Batista (“é mais perto, vão me visitar”). Não foi. Numa cerimônia simples, sem discursos, foi enterrada no Cemitério Comunal Israelita, no Caju.