Em: “Capitães da areia”, publicado inicialmente em 1937.

Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram a Barandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Assim mesmo, estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam tomar como um menino, um dos Capitães da Areia.

No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer:

— Tu tá gozada…

Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.

— Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.

O assombro deles não teve limites:

— Tu quer dizer…

Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.

— … que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas…

— Isso mesmo — sua voz estava cheia de resolução.

— Tu endoidou…

— Não sei por quê.

— Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa pra homem.

— Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.

Pedro Bala procurou o que responder:

— Mas a gente veste calça, não é saia…

— Eu também — e mostrava as calças.

De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou:

— Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?

— É igual.

— Te metem no Orfanato. Tu nem sabe o que é…

— Tem nada não. Eu agora vou com vocês.

Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupado. Por isso ainda disse:

— Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um…

— Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não aguenta um empurrão…

— Posso fazer outras coisas.

Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem tivesse medo dos resultados.

***

Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendia a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de “meu irmão”. O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia num assombro das qualidades de Dora. Quase a achava tão valente como Pedro Bala. Dizia a Professor num espanto:

— É valente como um homem…

Professor preferia que não fosse assim. Sonhava com um olhar de carinho dos olhos da Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas, a Gato, a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala quando o via na carreira, fugindo da polícia ou de um homem que dizia na porta de uma loja:

— Ladrão! Ladrão! Me furtaram…

Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava. Professor ouve os elogios de João Grande mas não sorri.

***

Pedro Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho inchado e o lábio roxo, sangrando. Topara com Ezequiel, chefe de outro grupo de meninos mendigos e ladrões, grupo muito menor que o dos Capitães da Areia e muito mais sem ordem. Ezequiel vinha com uns três do grupo, inclusive um que fora expulso dos Capitães da Areia por ter sido pegado furtando um companheiro. Pedro Bala tinha ido deixar Dora e Zé Fuinha no pé da Ladeira do Tabuão para que eles fossem para o trapiche. João Grande tinha um serviço a fazer e não pudera ir com Dora. Pedro Bala pensou em ir com ela, em não deixá-la sozinha no areal. Mas como ainda não caíra a noite não havia perigo de um negro dar em cima dela. Demais ele tinha que ir receber uns cobres na mão de Gonzalez do “14”, dinheiro que era devido a uma batida que o grupo fizera nuns objetos de ouro de um árabe rico. 

Enquanto andava para o “14” Pedro Bala pensava em Dora. No cabelo loiro que caía no pescoço, nos olhares dela. Era bonita, era igual a uma noiva. Noiva… Nem podia pensar nisso… Não queria que os outros do grupo se sentissem com direito de pensar em safadezas com ela. E se ele dissesse a Dora que ela era como uma noiva para ele, outro poderia se julgar no direito de também dizer. E então não haveria mais lei nem direito entre os Capitães da Areia. Pedro Bala se recorda de que é o chefe… 

Vai tão distraído que quase esbarra em Ezequiel. Estão os quatro parados diante dele. Ezequiel é um mulato alto, fuma uma ponta de charuto. Pedro Bala fica parado também, esperando. Ezequiel cospe: 

— Não vê onde pisa?… Agora anda cego? 

— O que é que tu quer? 

O menino que fora dos Capitães da Areia pergunta: 

— Como vão aqueles frescos? 

— Tu ainda se lembra da surra que apanhou lá? Tu ainda deve guardar a marca. 

O menino range os dentes, quer avançar. Mas Ezequiel faz um gesto com a mão e avisa a Pedro Bala: 

— Um dia destes vou fazer uma visita a vocês. 

— Uma visita? — pergunta Bala desconfiado. 

— Diz que agora vocês têm uma putinha lá pra todo mundo… 

— Dobre a língua, filho da mãe. 

Com o soco Ezequiel rolou. Mas os outros três já estavam em cima de Pedro Bala. Ezequiel meteu o pé na cara de Bala. O que fora dos Capitães da Areia gritou: 

— Segura ele bem — e meteu o soco na boca de Pedro. 

Ezequiel deu dois pontapés na cara de Bala: 

— Fique sabendo que sou teu patrão. 

— Quatro… — começou a xingar Pedro Bala, mas um soco o calou. 

O guarda vinha marchando para eles, debandaram. Pedro Bala apanhou o boné, as lágrimas de raiva desciam junto com o sangue. Estendeu a mão fechada para o lado por onde Ezequiel e os seus haviam desaparecido. O guarda falou: 

— Desaperta, corneta. Dá o fora antes que lhe leve pro xilindró. 

Pedro Bala cuspiu puro sangue. Desceu a ladeira devagar, nem pensou em ir buscar o dinheiro de Gonzalez. Descia resmungando consigo mesmo: “só são homem quatro contra um”. E pensava vinganças. 

Entrou no trapiche, Dora estava sozinha com o irmão que dormia. Os últimos raios do sol entravam pelo teto dando uma estranha claridade ao casarão. Dora o viu entrar e andou para ele: 

— Segurou os cobres?…

Mas enxergou o olho inchado de Pedro, o beiço partido: 

— Que foi, meu irmão?

— Ezequiel mais três. Só são homem de quatro pra cima… 

— Fez isso em tu? 

— Foi quatro. Assim mesmo porque me pegaram desprevenido. Eu caí na besteira de pensar que Ezequiel vinha só. Era quatro. 

Ela o sentou, foi ao canto de Pirulito, trouxe água. Com o pedaço de pano limpou as feridas dele. Pedro arquitetava planos de vingança. Ela apoiou: 

— A gente acaba com eles desta vez. 

Pedro riu: 

— Tu vai também? 

— Se vou.

Agora limpava os lábios dele, estava curvada na sua frente, seu rosto bem próximo do de Bala, os cabelos loiros misturados com os dele. 

— Por que foi a briga?

— Por nada. 

— Diga… 

— Ele disse umas coisas…

— Foi por causa de mim, não foi? 

Ele abanou a cabeça afirmando. Então ela chegou os lábios para junto dos de Pedro Bala, o beijou e depois fugiu. Ele saiu correndo atrás dela mas ela se escondia, não se deixava pegar. Aos poucos foram chegando os outros. Ela de longe sorria para Pedro Bala. Não havia nenhuma malícia no seu sorriso. Mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros. Era um doce olhar de noiva, de noiva ingênua e tímida. Talvez mesmo não soubessem que era amor. Apesar de não ser noite de lua havia um romântico romance no casarão colonial. Ela sorria e baixava os olhos, por vezes piscava com um olho porque pensava que isto era namorar. E seu coração batia rápido quando olhava. Não sabia que isso era amor. Por fim a lua veio, estendeu sua luz amarela no trapiche. Pedro Bala se deitou na areia e mesmo de olhos fechados via Dora. Sentiu quando ela chegou e deitou a seu lado. Disse: 

— Tu agora é minha noiva. Um dia a gente se casa. 

Continuou de olhos fechados. Ela disse baixinho: 

— Tu é meu noivo. 

Mesmo não sabendo que era amor, sentiam que era bom. 

Quando Sem-Pernas e João Grande chegaram Pedro Bala se levantou da areia e reuniu os chefes. Foram para junto da vela do Professor. Dora veio também e sentou entre João Grande e Boa Vida. O malandro acendeu um cigarro, falou pra Dora: 

— Tou aprendendo tocar um samba porreta. E tou cavando um violão, irmã. 

— Tu tá tocando batuta mesmo, mano. 

— É um tal de sucesso nas festa… 

Pedro Bala interrompeu a conversa. Olhavam para o lábio dele, o olho inchado. Ele narrou o caso: 

— Quatro contra um…

 — Precisa duma lição — falou Sem-Pernas rindo. — Eu não vou com aquele cara. 

Formaram um plano de batalha. E pelo meio da noite saíram uns trinta. O grupo de Ezequiel dormia para as bandas do Porto da Lenha, nuns barcos virados e na ponte. Dora foi junto a Pedro Bala e levava uma navalha também. Sem-Pernas disse: 

— Até parece Rosa Palmeirão. 

Nunca houvera mulher tão valente como Rosa Palmeirão. Dera em seis soldados de uma vez. Todo marítimo sabe o seu ABC no cais da Bahia. Por isso Dora gosta da comparação e sorri: 

— Obrigado, mano. 

Irmão… É uma palavra boa e amiga. Se acostumaram a chamá-la de irmã. Ela também os trata de mano, de irmão. Para os menores é como uma mãezinha, igual a uma mãezinha. Cuida deles. Para os mais velhos é como uma irmã que diz palavras boas e brinca inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vida aventurosa que levam. Mas nenhum sabe que para Pedro Bala ela é a noiva. Nem mesmo o Professor sabe. E dentro do seu coração Professor também a chama de noiva. 

O cachorro que o Sem-Pernas arranjou vai latindo. Volta Seca imita o latir de um cachorro, todos riem. João Grande assovia um samba. Boa Vida começa a cantá-lo em voz alta: 

“A mulata me abandonou…”

Vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças. Mas só os sacarão se os outros puxarem. Porque os meninos abandonados também têm uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana. 

De repente João Grande grita: 

— É ali. 

Com a algazarra que fazem Ezequiel sai de sob um barco: 

— Quem vem lá? 

— Os Capitães da Areia que não engole desaforo… — respondeu Pedro Bala. 

E arrancam para cima dos outros. 

***

A volta foi um triunfo. Apesar de Sem-Pernas ter um talho e Barandão vir quase nos braços de tanta pancada (um grandão do grupo de Ezequiel o surrara até que Volta Seca o rebentou) voltavam todos alegres, comentando a vitória. Os que tinham ficado no trapiche deram vivas. Ainda duraram muito conversando, comentando. Falavam na coragem de Dora que brigara igual a um menino. “Igual a um homem”, dizia João Grande. Era como uma irmã, exatamente igual a uma irmã… 

***

Igual a uma noiva, exatamente igual a uma noiva, pensava Pedro Bala estendido na areia. A lua amarelava o areal, as estrelas se refletiam no mar azul da Bahia. Ela veio, deitou ao lado dele. E começaram a falar de coisas tolas. Igual a uma noiva. Não se beijaram, não se abraçaram, o sexo não os chamava naquele momento. Só de leve o loiro cabelo dela tocava em Pedro Bala. 

— Teu cabelo é bonito! — disse ele. 

Ela riu, olhou o cabelo dele: 

— O teu também. 

Riram os dois e logo foi uma gargalhada. Era um hábito dos Capitães da Areia. Ela começou a contar coisas do morro, histórias dos vizinhos, ele relembrava fatos da vida agitada do grupo: 

— Vim pra aqui com cinco anos. Menor que teu irmão… 

Riam inocentemente, felizes de estarem um ao lado do outro. Depois o sono veio. Estavam separados, Pedro tomou a mão dela, segurou. Dormiram como dois irmãos.

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