
Graciliano Ramos, escritor alagoano (1892 – 1953).
Um tempo de desafios cotidianos
Graciliano Ramos viveu sessenta anos. Tendo nascido no século XIX (1892) e morrido na metade do século XX (1953), viu o mundo sofrer transformações sociais, políticas, econômicas e literárias.
Já que a História costuma ser escrita entre avanços e recuos ideológicos, devem ser lembrados, um pouco antes do seu nascimento, dois fatos significativamente vanguardistas: a Abolição da Escravatura no Brasil (1888) e a Proclamação da República (1889).
Talvez se pudesse concluir, então, que Graciliano Ramos nasceu numa época em que, pelo menos no Brasil, sopravam alguns ventos com sementes de liberdade.
Um pouco mais tarde, coincidindo com sua partida para o Rio de Janeiro (ele chegava de Alagoas, onde tinha nascido), houve um recuo considerável na História da Humanidade: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Enquanto o mundo se autodestruía, Graciliano Ramos voltou ao Nordeste, casou-se, enviuvou e começou a escrever. Por enquanto, crônicas.
A Revolução Russa (1917), apoiada sobretudo pelo operariado, entusiasmou-o menos que a Revolução Chinesa (1949), que contava principalmente com os camponeses. Graciliano, homem da terra, tomou partido: confiando nos propósitos da revolução, esperava dias melhores e rumos certeiros para o povo chinês.
No Brasil, a Revolução de 1930 e a Revolução Constitucionalista de 1932 antecederam a Intentona Comunista, em 1935. Em novembro desse ano, militares pertencentes à Aliança Renovadora Nacional revoltaram-se contra o governo de Getúlio Vargas. Tratava-se da Intentona, logo controlada pelo exército. Entretanto, suas consequências se alastraram, ameaçadoras, por todo o território brasileiro: suspensas as garantias das liberdades individuais dos cidadãos, inúmeros indivíduos passaram a ser presos aqui e ali, sem maiores (nem menores) justificativas. Graciliano Ramos foi um deles, e suas lembranças, narradas dez anos depois, aparecem nas primeiras páginas de Memórias do Cárcere: “No começo de 1936, funcionário na Instrução Pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço”.
A prisão de Graciliano Ramos prolongou-se por quase um ano e ele assistiu, então, à implantação do Estado Novo (1937-1945) e à ascensão e queda do nazismo e do fascismo, enquanto durou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Mudanças profundas
Naturalmente, os fatos acontecidos entre a Abolição da Escravatura e a Revolução Chinesa não existiram isolados: nasceram, quase sempre, da necessidade e da vontade de substituir ideias e ideais ultrapassados, regimes obsoletos, economias estanques. E, já que a História não se faz por caminhos absolutamente pacíficos, a necessidade de mudar encontrava, frequentemente, uma reação que, embora não fosse igual e contrária, era, ao menos, diversa. Tudo isso gerava um desequilíbrio de forças e, mais tarde, superadas as crises, às vezes era difícil conviver com o novo, desafio cotidiano e desconhecido.
Graciliano enfrentou esse desafio enquanto viveu, tanto no plano pessoal quanto no profissional. Dotado de espírito teimosamente questionador, os fatos em volta não escapavam à sua acuidade crítica, até irônica. Analisando, por exemplo, a introdução oficial do futebol, “uma estrangeirice”, no Brasil, publicou uma crônica no jornal O Índio, em 1921: “Reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil ao cidadão que se dedica ao tão arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira”.
O romance nordestino
A mente atenta às inovações fez de Graciliano um jornalista de sensibilidade quase intuitiva, um administrador eficiente e um político com a ideia de tentar, senão melhorar, pelo menos denunciar as condições precárias da vida nordestina. Este foi também o seu trabalho como escritor. Fez parte do grupo do romance nordestino, que nasceu com a publicação de A Bagaceira (1928), do paraibano José Américo de Almeida. Antes de Graciliano, outros autores do grupo apareceram: Rachel de Queiroz (O Quinze, 1930, João Miguel, 1932), José Lins do Rego (Menino de Engenho, 1932), Jorge Amado (O País do Carnaval, 1932).
No ano da publicação de Caetés (1933), primeiro livro de Graciliano, surgiram também Doidinho (José Lins do Rego), Cacau, de Jorge Amado, e Os Corumbas, de Amando Fontes. Caetés, livro urbano de linha naturalista, não se aproximava das propostas da época.
No ano seguinte, 1934, surgiu São Bernardo e, daí para a frente, a realidade dramática da época passa a ser o tema de Graciliano.
Embora tenha uma temática comum ao grupo do romance nordestino (também chamado de regionalista), Graciliano difere dele na maneira de explorá-la.
Nordeste sem retoques
O retrato sem retoques que ele traça do Nordeste faz com que se distinga dos outros autores considerados “regionais”. Costuma ser frequente, nos escritores regionais, a transformação da terra num paraíso e de seus habitantes em heróis. E isso num clima de saudosismo, culto ao passado e à tradição da vida no campo.
Para Graciliano, o paraíso agreste não existe, simplesmente porque o que existe é o agreste. E o “Nordeste não é o umbigo do mundo; o umbigo do mundo é para ele a infinita miséria dos homens. E nós sentimos o Nordeste através dessa miséria, como, através da particular miséria dos seus heróis, sentimos a dos homens de qualquer parte da Terra”. (Adolfo Casais Monteiro, O Romance – teoria e crítica)