João Guimarães Rosa, escritor mineiro (1908 – 1967)

Uma vida feita de estórias

Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um léxico apenas não me é suficiente. Em outras palavras: gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade. A estas alturas, você já deve estar me considerando um louco ou um charlatão”.

Infelizmente, Guimarães Rosa não está se dirigindo a você, leitor, em primeira mão, como se essas palavras fossem especialmente psicografadas para este texto. Essa autocaracterização aparece em entrevista concedida a Günter Lorenz, em 1965. Num outro trecho, ele afirma: “Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim”.

Mas é certo que esse feiticeiro da palavra, meio gente, meio ficção, um homem alto, membros longos, tronco curto, gravatinha borboleta no pescoço, existiu de verdade. Tão de verdade que seus livros continuam a enfeitiçar as pessoas, enquanto vão destilando lições de existência. E somam-se a eles o testemunho de pessoas que, de 1908 a 1967, conviveram com ele no sertão de Minas e Goiás, nos bancos de Belo Horizonte, nos protocolos do Itamarati e nas circunspectas cadeiras de Academia Brasileira de Letras.

Uma infância solitária

É fato confirmado em cartório que, no dia 27 de junho de 1908, o senhor Floduardo Pinto Rosa, pequeno comerciante residente na cidade de Cordisburgo, Estado de Minas Gerais, e dona Chiquinha, Francisca Guimarães Rosa, tiveram um filho, primeiro de uma lista que chegaria a seis, e deram-lhe o nome de João.

A pequena cidade de Cordisburgo, situada entre Curvelo e Sete Lagoas, zona de fazenda e engorda de gado, abrigou o rebento durante dez anos. Dessa época, Guimarães Rosa confessou uma vez: “Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope e, nem mesmo eu, ninguém sabia. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só chegou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas”.

Depois dessa infância interiorana, mesclando as convivências com a natureza, as primeiras letras com Mestre Candinho, o gosto de ter lido o primeiro livro em francês aos seis anos de idade – Les Femmes qui Aimment –, Guimarães Rosa vai para Belo Horizonte com o avô, em 1918, e matricula-se no 1º ano ginasial  do colégio Arnaldo. Por coincidência (ou será que Guimarães torceria o nariz para essa palavra, achando que seu significado é pura invenção dos descrentes?), o mesmo colégio onde estudou Carlos Drummond de Andrade. 

Daí para frente, e até ingressar na Faculdade de Medicina, em 1925, obtém licença para frequentar a biblioteca da cidade, dedicando seu tempo também aos esportes, às línguas e à história natural.

Médico, soldado e rebelde

Os anos dedicados à Faculdade de Medicina não lhe roubaram o interesse pela literatura. Antes que a década de 30 tivesse início, e graças a um concurso que rendia 100 mil réis ao vencedor, o público brasileiro leu pela primeira vez o autor de Grande Sertão: Veredas. No dia 7 de dezembro de 1929, o no 57 da revista O Cruzeiro publicou “O Mystério de Highmore Hall”, conto de estreia de Guimarães Rosa. Concorreu mais vezes e em todas foi premiado e publicado. Entretanto, essas produções nada têm a ver com o estilo rosiano e não foram mais retomadas.

Em 1930, formado em Medicina, foi exercer a profissão em Itagurara, município de Itaúna, permanecendo nessa região por dois anos. Dizem os bisbilhoteiros que Guimarães Rosa escolheu esse lugar porque ali não havia nenhum médico e, assim, ele poderia iniciar sua carreira sem concorrentes. Verdade ou não, que em se tratando do criador de Riobaldo as verdades são sempre multifacetadas, ele se revelou um médico dedicado, respeitado e famoso pela precisão de seus diagnósticos. As suas longas viagens a cavalo serviam para estudar medicina, calcular o preço da consulta de acordo com as distâncias e conviver com uma população e com uma paisagem que mais tarde ressurgiriam metamorfoseadas em textos.

Em 1932, ano da Revolução Constitucionalista, Guimarães voltou a Belo Horizonte e serviu como médico voluntário da Força Pública, órgão em que ingressa posteriormente por concurso. A partir de 1933, atuou como oficial-médico do 9º Batalhão de Infantaria em Barbacena. Antes que a década de 30 chegasse ao fim, mais dois concursos literários contaram com a participação de Guimarães Rosa. Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe um prêmio da Academia Brasileira de Letras. Em 1937, sob o pseudônimo de Viator, concorre ao prêmio Humberto de Campos, com um volume intitulado Contos e que quase dez anos mais tarde se transformaria em Sagarana

“Chagamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida e, a rigor, essa sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte…”. Essas palavras foram dirigidas também a Günter Lorenz.

Outras veredas: diplomacia e literatura

Em 1934, o domínio e o interesse por vários idiomas levam Guimarães Rosa a prestar concurso para o Itamarati. Em 1938, foi nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo e, em 1942, foi internado em Baden-Baden juntamente com outras pessoas do corpo diplomático. Libertado em troca de diplomatas alemães, volta ao Brasil e segue para Bogotá como secretário da embaixada brasileira. Em 1944 retorna ao Brasil e em 1946 é nomeado chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura. Nesse mesmo ano, vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz e estreia oficialmente na literatura brasileira com o livro Sagarana, que lhe rendeu vários prêmios e mais o reconhecimento de que essa era “uma das mais importantes obras aparecidas no Brasil contemporâneo”.

Em 1948, atua em Bogotá como secretário-geral da delegação brasileira à IX Conferência Internacional e passa a residir em Paris até 1950, atuando como primeiro-secretário e conselheiro da Embaixada brasileira. Em 1951, volta ao Brasil e, novamente, é nomeado chefe de gabinete do ministro João Neves Fontoura.

Em 1952, faz uma viagem pelo sertão de Minas Gerais com um grupo de vaqueiros. A viagem durou dez dias e dela participou Manuel Narde, vulgo Manuelzão, protagonista de “Uma estória de amor”, incluída no volume Manuelzão e Miguilin. Nesse mesmo ano, publica pela segunda vez o texto Com o vaqueiro Mariano, espécie de reportagem poética a respeito da vida dos vaqueiros no oeste do Brasil.

Em 1953, é nomeado chefe da Divisão de Orçamento do Itamarati. Em 1956, depois de longo tempo sem publicar uma obra que desse continuidade a Sagarana, publica Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, consagrando definitivamente seu estilo. Apesar da complexidade do romance Grande Sertão: Veredas, seu autor confessou: “… não me envergonho em admitir que Grande Sertão me rendeu um montão de dinheiro. (…) A esse respeito, quero dizer uma coisa: enquanto eu escrevia Grande Sertão, minha mulher sofreu muito porque nessa época eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela, para agradecer sua compreensão e paciência. Você deve saber que tenho uma mulher maravilhosa. Como sou um fanático da sinceridade linguística, isso significou para mim que lhe dei o livro de presente e, portanto, o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele”.

Em 1958, é promovido a ministro de primeira classe (diplomata), mas prefere continuar no Rio e, em 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras. 1962 é também o ano de publicação de Primeiras estórias. Em 1963, candidata-se à Academia Brasileira de Letras, na vaga de João Neves da Fontoura, e é eleito por unanimidade.

Durante quatro anos adiou sistematicamente a posse, viu seus livros reeditados no Brasil e traduzidos para várias línguas, dedicou-se ao Serviço de Demarcação de Fronteiras, participou do I Congresso Latino-americano de Escritores, fez parte do júri do II Concurso de Romance Walmap e publicou, em meados de 1967, Tutaméia (Terceiras Estórias).

Posse na Academia: a despedida

Decide tomar posse na Academia em 16 de novembro de 1967 – data do aniversário de nascimento de seu antecessor. Em meio à apreensão de seus amigos mais chegados, que o viram protelar esse acontecimento durante tanto tempo, como se tomar posse significasse finalizar seu compromisso com a vida, proferiu um discurso que, embora dedicado a João Neves, três dias depois soava como despedida premonitória: “… a gente morre é para provar que viveu. (…) As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Em 19 de novembro, morreu de enfarte – encantou-se. E, como Carlos Drummond de Andrade:

“Ficamos sem saber o que era João                                                     
e se ele existiu
de se pegar”.

Guimarães Rosa durante sua posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, entre Juscelino Kubitschek e Austregésilo de Athayde: escritor morreu 3 dias depois — Foto: O Globo.

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