
Lima Barreto, escritor carioca (1881 – 1922)
Uma literatura do povo para o povo
“Sonhei-me um Capitão Nemo, fora da humanidade… sem ligação sentimental alguma no planeta, vivendo no meu sonho, no mundo estranho que não me compreendia.” “Diário do Hospício”
Como caracterizar de modo coerente um escritor cujos críticos até bem pouco teimavam em ignorar, ou, quando não ignoravam, em considerar “desmazelado”, mártir ou alcoólatra?
Em Lima Barreto, de fato, fica difícil simbolizar os limites entre o intelectual profundamente consciente das questões políticas e sociais de seu tempo e o estilista que insistia em não ter estilo algum; entre o repórter extremamente impiedoso e mordaz, que atacava de frente o lado grotesco dos homens, e o mulato oprimido que chorava às escondidas na solidão do seu quarto, enchendo as páginas do diário de angústia, vergonha e ressentimentos.
Exagero, coisas de escritor provinciano, dissertam alguns, enquanto outros preferiram não arriscar, levando em conta apenas a hipótese pretensamente plausível de um justificado complexo de inferioridade. A verdade, porém, é que Lima Barreto confundia literatura e coerência intelectual. Mais do que tudo, o que importava, para ele, era a sinceridade do escritor e a necessidade de transmiti-la diretamente, sem rodeios ou artificialmente. Pagou, por isso, com a fama de desleixado e passou muito tempo sem que alguém lembrasse de seus escritos ou sequer de sua presença nas letras nacionais.
Injustiça ou não, o fato é que a situação perdurou, e durante uns bons anos o leitor brasileiro não pôde vê-lo em sua luta quase solitária para que, nesse país, a literatura de algum modo levasse ao homem comum a mensagem de sua própria libertação e o estímulo para que não deixasse de lutar enquanto todos os seus direitos fundamentais não fossem reconhecidos. Eram esses, conforme acreditava, os objetivos do escritor e, nessa missão de libertar os homens e melhorar-lhes a condição de vida, convinha não perder de vista que todo o vigor da experiência pessoal era indispensável para sustentar a consciência artística. Ser militante, segundo ele, implicava pôr de lado o “bonito” pelo “real”, funcionando o texto como um autêntico carro de assalto que investe contra o mundo, ao invés de evitá-lo para fugir ao choque.
Linguagem simples, comunicativa
Lima Barreto sempre soube fazer uso abrangente da linguagem para a comunicação militante de sua arte. Foi acusado de incorreção e mau gosto, mas na verdade não se pode dizer que não soubesse jogar com as palavras para delas extrair os efeitos estéticos ou funcionais que a natureza do texto exigisse. Apesar de ter escrito sempre em condições desfavoráveis, sua linguagem é rica de comunicação e de recursos expressivos, o que não significa que tivesse poupado os puristas e os gramatiqueiros inconsequentes ou que desse valor às regras padronizadas da Academia. Como notou Antônio Houaiss, Lima Barreto sempre se caracterizou por uma atitude de rebeldia, que procurou, por todos os meios – a diversidade, a equivalência, os sincretismos -, mostrar que a rigidez da gramática estava longe de corresponder a uma realidade viva de linguagem em todos os seus matizes. Não faltou, contudo, quem lhe cobrasse hábitos de escolaridade sistemática e pusesse de lado a força de seu talento e de sua inventividade.
Na verdade, poucos, neste país, pagaram tão caro por terem se atrevido a falar em nome do oprimido com a mesma ferocidade do opressor. Afirmou-se dele que era um escritor cheio de ressentimentos pessoais devido à sua condição de mulato e particularmente de alcoólatra, e chegou-se ao extremo de supor que escrevia por vingança, apenas para chamar a atenção da sociedade que o marginalizava. Um negro que falava de negros – era como pensavam -, estando sociologicamente na mesma situação deles, pois era incapaz de tornar-se “branco” para efeitos práticos e imediatos.