Hoje mergulhamos em uma das relações familiares mais profundas e comoventes da literatura brasileira: a do poeta Carlos Drummond de Andrade com sua única filha, a escritora e cronista Maria Julieta Drummond de Andrade. Uma história marcada por carinho, cumplicidade intelectual e, finalmente, uma perda devastadora.
A ligação entre pai e filha era um misto de cuidado, amor e uma afinidade intelectual inegável. Para muitos, Maria Julieta (nascida em 1928, em Belo Horizonte) era a “grande amizade intelectual” de Drummond. Essa intensa conexão é mais evidente nas milhares de cartas que trocaram ao longo de cinquenta anos, um ritual semanal mantido mesmo após Maria Julieta se mudar para Buenos Aires, na Argentina, onde viveu por 34 anos. Nessas correspondências, eles discutiam desde temas triviais até literatura, arte e cinema, revelando uma intimidade elegante e profunda.
O peso do legado e a paixão pela escrita
Maria Julieta também abraçou a escrita, tornando-se uma cronista publicada no jornal O Globo e no Jornal do Brasil. Ela publicou três livros de crônicas:
- Um Buquê de Alcachofras (1980)
- O Valor da Vida (1982)
- Gatos e Pombos (1986)
No entanto, o peso de ser filha de um gênio literário é uma complicação reconhecida. Seu próprio genro, Octavio Mello Alvarenga, chegou a afirmar que Drummond “a massacrou como intelectual e escritora”, acrescentando que “ser filha de um gênio é intolerável.” De fato, apesar de seu talento, Maria Julieta nunca alcançou a aclamação crítica do pai, sendo muitas vezes ofuscada por sua sombra. Contudo, ela também se dedicou à difusão da cultura brasileira na Argentina, trabalho que Drummond considerava mais importante que o seu.
Preparado para a morte? O diálogo inesquecível
Um dos momentos mais tocantes dessa relação, e que revela a cumplicidade e o humor afiado entre os dois, foi a entrevista que Maria Julieta fez com o pai em 1984. O poeta, conhecido por ser avesso a entrevistas, abriu-se à filha em um bate-papo sincero.
Questionado sobre a morte e a crença em Deus, Drummond foi direto, em seu estilo reflexivo e cético:
“Eu não creio nele, creio realmente numa organização natural. (…) A única coisa de que estou convencido é a de que nós morremos de verdade, morremos mortos. A essência humana desaparece, se ela se converte em cinza, em adubo, em qualquer coisa, não é mais a essência humana. Então vamos convir que o homem não é assim tão importante.”
Quando Maria Julieta perguntou se ele estava preparado para a morte, ele respondeu: “Eu acho que estou. Tanto quanto é possível, porque eu sei lá qual é a sensação que eu vou ter quando eu sentir que estou morrendo.”
O diálogo também tocou em temas de vida e felicidade:
Maria Julieta: Um dia você me falou que se considerava um homem feliz.
Drummond: É, nesse sentido, eu me considero um homem feliz, porque eu não fiz força para viver. Eu não sofri grandes traumas na vida. Tive um grupo de amigos que me ajudou muito, que me salvou do desânimo que era uma tendência natural do meu espírito.
Maria Julieta: Eu acho que você dá uma valor excessivo a esses amigos, é inútil ter bons amigos se a pessoa não tem dentro de si a capacidade de se salvar.
O fim de uma vida feita de amor
O desfecho dessa história é um dos mais melancólicos da história da literatura. Em 5 de agosto de 1987, Maria Julieta faleceu aos 59 anos, vítima de um câncer.
A perda foi devastadora para Carlos Drummond de Andrade, então com 84 anos. No cemitério, ele teria confidenciado a um amigo: “Minha vida acabou.”
Doze dias depois, em 17 de agosto, Drummond sofreu um infarto fulminante e morreu. A cardiologista Elizabete Viana de Freitas, sua médica, dispensou o jargão técnico para descrever a causa de sua morte: ele “morreu de amor.” O poeta foi sepultado ao lado de sua filha no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.
O elo entre Carlos Drummond de Andrade e Maria Julieta é uma prova de que, para além da obra imortal, o poeta viveu uma história de amor familiar igualmente intensa, capturada e preservada na imensidão de suas cartas. Uma história que demonstra como a vida, mesmo para um dos maiores escritores do Brasil, pode perder o sentido sem a presença de um amor incondicional.